A vida espiritual,
a vida cristã
é permeada de paradoxos
sempre a nos desafiar
em nossa lógica mundana, material,
simplista e linear:
é dando que se recebe,
é dividindo que se multiplica,
os últimos serão os primeiros,
a quem muito tem, mais será dado,
é perdendo a vida que a ganhamos,
felizes são os aflitos,
rico é o que nada tem,
a verdade se oculta aos sábios e doutores,
os humildes são exaltados,
amai os inimigos,
dai a outra face ao que te agride…
paradoxos que só são compreendidos
à luz da fé,
paradoxos com os quais são tecidos
os mistérios da fé.
Um desses misteriosos paradoxos
é o da obediência:
é somente na obediência total a Deus
que somos verdadeiramente livres…
Desde os anos da minha juventude,
busquei ardorosamente
e apaixonadamente
ser livre.
Me recusava a aceitar
o poder de qualquer autoridade
e defendia obstinadamente
o direito de seguir apenas
a minha vontade, os meus princípios,
a minha razão e os meus desejos.
É como se eu me considerasse o centro do mundo,
meu discernimento, meu saber,
minha vontade, meu querer,
era o único critério
para as minhas escolhas.
Eu queria ser livre
para viver minha vida
com plenitude,
para viver de acordo com a minha verdade,
para escolher os meus caminhos,
para me autodeterminar
e ser a autora e arquiteta da minha vida.
Paradoxo dos paradoxos!
Na busca irrequieta da minha liberdade
não percebia e não compreendia
que me tornara escrava do meu orgulho,
da minha arrogância e presunção,
do meu egoísmo e vaidade,
dos meus desejos e paixões.
Fazendo de mim o centro,
tornei-me prisioneira
de minhas ilusões.
Quando pude ver
os grilhões que me prendiam,
supliquei ao Pai a coragem da humildade
e me abandonei aos pés do seu Filho,
banhada no amor do Espírito.
Compreendi, então, a liberdade da humildade,
a liberdade do esvaziamento
de toda pretensão e arrogância de saber,
e entregando minha vontade
ao Senhor da Vida,
em total obediência aos seus desígnios,
compreendi o sentido
da verdadeira liberdade.
Os animais obedecem aos instintos,
os organismos vivos obedecem aos automatismos celulares,
as células obedecem às instruções do seu genoma,
a matéria inerte obedece às leis físicas e naturais.
Tudo o que existe
é determinado, subjugado
por leis, mecanismos físicos ou biológicos.
A consciência humana,
o coração humano,
pode ser subjugado
pelo egoísmo e pelo orgulho,
pelas paixões e desejos
e pode se deixar aprisionar
pelas ilusões e pela mentira,
pelas amarras e grilhões
do inimigo, do adversário,
do anjo das trevas.
Assim, preso,
amarrado, subjugado às mentiras
criadas, sustentadas e alimentadas
pelo egoísmo e pelo orgulho,
o ser humano se ilude
e se crê livre.
É somente saindo de si mesmo,
indo ao encontro do outro
no abandono e na entrega do amor,
na renúncia e na humildade,
que nos libertamos dessas amarras.
Nos descentrando,
indo para fora,
nos desapegando,
nos esvaziando,
nos entregando ao Senhor da Vida
com a obediência
com que Cristo se entregou na cruz,
nos tornamos verdadeiramente livres.
Nos tornamos quem somos verdadeiramente,
Filhos de Deus,
semelhantes a Ele
na liberdade de co-herdeiros do Reino.
Ainda agora
estamos aprisionados
na dimensão corporal do espaço-tempo,
nossa consciência é limitada pelos sentidos,
nossa compreensão é limitada pela razão,
nosso espírito está aprisionado no corpo como num casulo.
As necessidades do corpo
restringem nossa liberdade,
necessidade de alimentos, de repouso,
de sobrevivência biológica.
O corpo, os sentidos e a razão
nos impõem limites à liberdade
de nosso espírito.
Mas enquanto caminhamos,
peregrinos nesse mundo,
podemos escolher
o fardo leve e o jugo suave
do caminho do Cristo,
que é o caminho da obediência a Deus,
o caminho reto,
a porta estreita.
Paradoxalmente,
vivendo a obediência plena a Deus,
somos livres.
Paradoxalmente,
como dizia o santo monge do deserto
Doroteu de Gaza,
o caminho estreito é “estrada espaçosa também
por causa da libertação das paixões”.
Padecemos, sofremos,
caímos, tropeçamos,
cansamos, hesitamos,
mas somos bem-aventurados na dor,
somos fortes quando somos fracos,
somos encontrados quando nos perdemos,
somos consolados em todas as nossas aflições,
pois o fardo é leve
e o jugo é suave.
Na obediência da cruz
vivemos a antecipação
da glória da ressurreição.
Entregando nossa vida e nosso espírito
no cumprimento dos mandamentos e desígnios do Pai,
antegozamos da felicidade perene
e inabalável
da comunhão com Ele no amor.
Morrendo para o egoísmo
e para a vontade própria,
antegozamos da glória da vida eterna,
que é a liberdade pura e plena
dos filhos reunidos
no seio do Pai.
Glória que os olhos na terra jamais viram,
que coração na terra jamais sentiu,
que só conheceremos plenamente
quando, libertados da prisão do corpo,
dos sentidos e da razão,
mergulharmos de volta ao seio do Criador,
nossa morada na eternidade
e na liberdade de Filhos de Deus.
“Como está escrito, ‘o que Deus preparou para os que o amam é algo que os olhos jamais viram nem os ouvidos ouviram nem coração algum jamais pressentiu” (1Cor 2,9)