23 de março de 2017
Filho amado,
Hoje faz um mês que estou vivendo no mosteiro. Talvez você esteja se perguntando como é viver assim, separada do mundo, numa comunidade de oração e trabalho, sem as distrações e preocupações da vida no mundo. Realmente, a experiência é como a de viver num outro espaço-tempo, numa outra dimensão, como que num outro planeta.
Tudo aqui é invertido. O que é prioridade no mundo, aqui é secundário; e o que é rejeitado e desprezado no mundo, aqui é essencial, é o mais necessário. Aqui é o mundo virado ao avesso, ou de ponta-cabeça: o último é o primeiro, o menor de todos é o maior, o mais despossuído é o mais rico. A obediência é experenciada como libertação e a humildade, como exaltação.
Difícil explicar esse mundo, descrever esta realidade. Quem olha apenas as aparências, os corpos que se movimentam silenciosamente em sua rotina diária, as vestes negras, as regras e os ritos, não consegue captar essa experiência. É preciso um olhar que atravesse o visível, o mundo sensível (isto é, o mundo apreensível pelos sentidos físicos), e alcance a realidade invisível, oculta, por trás destas aparências.
Esta, então, é uma das chaves para compreender a experiência de viver no mosteiro: “mundo invisível”. A vida aqui gira em torno de uma realidade que é invisível aos olhos. Se você observar a vida no mosteiro sem considerar a existência dessa realidade invisível que a sustenta e rege, tudo lhe parecerá inútil, arbitrário e arcaico. Mas como perceber algo que é, em sua essência, invisível ao olhar? Como acreditar na sua existência se não pode ser visto, percebido empiricamente?
Aqui então entra outra chave que dá sentido e significado à vida no mosteiro: “fé”. Uma palavra gigantesca de apenas duas letras. É gigante pela imensidão e riqueza de significados, pelas suas conseqüências na história da humanidade e pelos seus efeitos e sua ação na vida de cada pessoa humana. E ao tentar abrir e desvelar para você os significados que a palavra “fé” tem para mim, me vejo de volta ao oceano que navegávamos em minha última carta, ao mar das minhas experiências de Deus e à barca das palavras…
Para mim, a fé é um modo de ver, é um modo de perceber, como se fosse um sentido “extra”, além dos sentidos físicos, que nos permite perceber a realidade “sobrenatural”, o “mundo invisível”. No entanto, seria equivocado chamá-lo de sentido “extra” porque é, penso eu, o sentido primeiro, o fundamento de todos os outros sentidos.
Uma pessoa sem experiência de fé, isto é, sem esse olhar aberto para o sobrenatural, que venha ao mosteiro e observe nossos gestos, nossos ritos e assista nossas celebrações litúrgicas, não conseguirá perceber o que estamos realmente “fazendo”. É como um surdo de nascença que fosse levado a uma sala de concerto durante a execução de uma sinfonia de Beethoven. Para ele, os gestos e movimentos dos músicos, a coreografia sincronizada de dedos e corpos ao redor dos instrumentos, seriam ritos arbitrários e aleatórios. É necessário possuir o sentido da audição para que a experiência na sala de concerto revele todo seu significado.
Assim como não é possível descrever a experiência de escutar a nona sinfonia de Beethoven a um surdo de nascença, também não conseguirei descrever, a quem não tem ainda aberto esse “olhar da fé”, a minha experiência de escutar a Deus e de falar com ele na paz e no silêncio do mosteiro, de sentir sua presença no altar, de vê-lo na Eucaristia e de me unir a ele nas celebrações litúrgicas. Estas experiências não farão nenhum sentido para tal pessoa e serão interpretadas como meras criações da mente, como frutos da imaginação e da autossugestão.
Por isso, enquanto navegamos no oceano das minhas experiências, peço apenas que você suspenda seu julgamento quanto à realidade delas e que deixe em aberto, por ora, todas as possibilidades. Talvez o mundo sobrenatural seja apenas um mundo imaginário, ou talvez, pelo contrário, o mundo natural é que seja apenas a aparência externa e visível de uma realidade mais fundamental e oculta.
Também descobri, nesta minha travessia, que todos os oceanos são, na verdade, um só e mesmo oceano, que as minhas experiências e visões de Deus são idênticas às experiências e visões de tantos outros navegantes que se atreveram a compartilhar suas travessias em palavras e imagens.
No entanto, com estas minhas cartas, não espero que você, como meu companheiro de viagem, compreenda estas experiências no sentido de vivê-las da mesma forma que eu, mas que navegue comigo com as âncoras içadas, sem presunções e sem certezas, aberto a todas as possibilidades, a todos os ventos e direções…
Por hoje, termino esta carta, aguardando aonde nos levará a próxima brisa…
Com amor infinito e sem medida,
Mami